segunda-feira, 29 de maio de 2006

Krónikas duma viagem ao Douro - 7

Na minha mesa 47 - Ramalhão



De regresso a casa, última paragem para um repasto em local recomendado pelo guia de restaurantes. Descendo de Viseu, dirigimo-nos ao Ramalhão, em Montemor-o-Velho, no caminho entre Coimbra e a Figueira da Foz.
Montemor-o-Velho é uma localidade não muito grande, onde vamos entrando pela rua principal e rapidamente, sem procurar, encontramos um portão com uma placa que tem escrito “Ramalhão”. A entrada é fora do comum: entra-se por um quintal com ar meio desarrumado, subimos umas escadas para o interior duma casa onde encontramos uma casa de banho, continuamos a subir e chegamos a uma porta que dá para outra rua. Temos então que entrar pela esquerda, junto à cozinha, para chegar à sala do restaurante.
A sala é relativamente grande, com um ar meio rústico. A primeira expectativa é prometedora. Começa a desvanecer-se quando um casal já com uma idade respeitável (mais ele do que ela) vem à mesa. Ao contrário dos outros locais por onde passámos, aqui o atendimento é frio e distante. Somos olhados com um ar de desconfiança e parece que nos estão a fazer algum favor. Não há um sorriso, não há um aceno de simpatia, as respostas são secas e ríspidas. Rapidamente começamos a sentir algum incómodo por estar ali.
A ementa é variada e apetitosa, à base de pratos regionais. Pedimos uma dose de cabrito e uma de arroz de galinha vadia, porque os mais jovens comem pouco, o que nos faz ser olhados de soslaio pela reduzida quantidade do pedido. O cabrito mais uma vez cumpriu as expectativas e o arroz de galinha, num género de cabidela em tacho de barro, estava delicioso e malandrinho.
Quanto a bebidas, um singelo Frei João que também fez o papel que dele se espera. Os mais novos querem Ice Tea mas o dono responde rispidamente que “aqui não temos disso, bebem água”.
Começamos a ter vontade de devorar rapidamente a comida para desandar dali para fora. Quando chega a fase das sobremesas, estamos à espera da ementa mas uma necessidade fisiológica obriga a uma deslocação à casa de banho. Ao contrário do normal em locais públicos, esta casa de banho tem toalha de pano onde toda a gente limpa as mãos e tem sabonete de glicerina ao invés de sabonete líquido.
O dono chega entretanto e atira de chofre “eu ia dizer as sobremesas mas como a sua mulher não está cá eu volto depois”. Fico a olhar para ele sem sequer ter tempo de reagir. Quando a família está de novo completa à mesa, não escolhemos nada: ele decide que traz um prato com os vários doces existentes para provarmos um pouco de cada. Assim se fará.
Entre pudins, bolos e tartes despachámos as sobremesas e pagámos a conta. Saímos sem grande vontade de voltar. O almoço foi bom, mas não soube tão bem naquele ambiente tão pouco acolhedor.
Em síntese, na última etapa da viagem podemos criar aquilo que nos tinham pedido na primeira, quando parámos no Almourol: um slogan para o restaurante. E para este é fácil: “se quer ser recebido com simpatia e atenção, não vá ao Ramalhão”.
No final desta visita, ficamos a pensar o que leva os guias de restaurantes a tecer tantos encómios a um local com este tipo de atendimento. Será porque quando lá vão são recebidos nas palminhas, comem do bom e do melhor e se calhar no fim ainda têm a refeição de borla? E nem uma palavra acerca das casas de banho, com utensílios que já não se usam em locais públicos? Não basta que a comida seja boa, é preciso que o cliente se sinta bem onde está e este não foi, definitivamente, o caso.

Kroniketas, enófilo esclarecido

Restaurante: Ramalhão
Rua Tenente Valadim, 24
3140-255 Montemor-o-Velho
Telef: 239.689.435
Preço médio por refeição: 20 €
Nota (0 a 5): 2

quinta-feira, 25 de maio de 2006

No meu copo 46 - Porto Ramos Pinto LBV 98

Como já devem ter reparado (ou não...), ainda não escrevi uma única vez sobre vinho do Porto neste blog. Por uma simples razão: não sou grande conhecedor do género, nem sequer me considero um grande apreciador, porque são raras as vezes em que o bebo. A minha experiência ao longo dos anos com o vinho do Porto, na maior parte dos casos, resumia-se a provar uns cálices do mais vulgar Tawny que não me cativava por aí além, deixando-me aliás intrigado acerca dos motivos que levavam a que fosse tão apreciado e elogiado. Só quando tive oportunidade de provar alguns Vintage e LBV (Late Bottled Vintage, um vinho de engarrafamento tardio, ao contrário do Vintage que é engarrafado no ano da colheita), me apercebi de que há ali qualquer coisa de diferente e de qualidade superior.
Recentemente, um repasto caseiro pôs-nos em contacto com um Vintage da Real Companhia Velha. Há pouco mais de um mês, a visita à Quinta da Ervamoira despertou-me a atenção para o que se faz de Porto, porque é uma das produções daquela quinta, donde também saem uvas para um vinho de mesa, o Duas Quintas.
Daí para cá tenho vindo a espreitar para as prateleiras de vinhos do Porto nos supermercados, coisa que antes era raro. Há dias, um jantar em casa de amigos serviu como oportunidade para levar um LBV precisamente da Ramos Pinto. A escolha não foi casual, teve justamente como objectivo poder apreciar um néctar de Porto daquela casa. O Vintage ficará para outra altura.
Tanto o LBV como o Vintage têm um carácter completamente diferente do Tawny mais comum. Para melhor, claro. Este tinha um ligeiro toque adocicado, sem ser em excesso, e apesar de já ter oito anos de idade (sendo um LBV foi engarrafado em 2002) denotou alguma frescura e ainda juventude, o que me leva a pensar que poderá melhorar na garrafa durante mais alguns anos.
Como não tenho grandes pontos de referência acerca deste tipo de vinho nem nenhuma memória recente que sirva como comparação, apenas posso dizer que é um vinho que se bebe com agrado e melhora algum tempo depois de se ter aberto a garrafa. Custou em hipermercado 15,99 €, o que me parece um preço razoável para o género.
Mais apreciações acerca de vinhos do Porto deixo-as para o Tuguinho, e creio que o Pólis, bebedor frequente do género, poderá dar algumas achegas a este respeito.

Kroniketas, enófilo esclarecido

Vinho: Porto Ramos Pinto 98 (LBV)
Região: Douro/Porto
Produtor: Ramos Pinto
Preço em hipermercado: 15,99 €
Nota: não atribuída

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Krónikas duma viagem ao Douro - 6

No meu copo, na minha mesa 45 - Paço dos Cunhas de Santar 2004; O Cortiço




















Na parte final da viagem, um local que desde o início foi definido como paragem obrigatória. Referenciado por pessoas amigas e por todos os guias de restaurantes, rumámos a Viseu para visitar o Cortiço. Fica situado no centro histórico da cidade, numa rua estreita que sai da praça onde está a estátua de D. Duarte.
Telefonou-se a reservar mesa, e ainda bem, porque à hora marcada para o jantar (20 h) a sala não está cheia mas começa rapidamente a ficar lotada, porque o espaço não é muito amplo, e facilmente nos apercebemos de que a procura é grande. Nas paredes, decoradas de forma a puxar para o rústico, algumas fotografias de visitantes conhecidos e, sobretudo, recortes e escritos de gente que por lá passou. Percorrendo algumas encontramos assinaturas do grupo Vozes da Rádio, dos UHF, do Rio Grande, para citar apenas alguns. Há até uns versos de Jorge Palma com muita graça.
Sob a supervisão sisuda do que parece ser o gerente da casa, uma equipa de empregados de mesa jovens atende de forma solícita e eficiente. Comenta-se que aqueles rapazes parecem ter feito uma formação em hotelaria, porque cumprem todos os preceitos de quem está devidamente instruído, longe do amadorismo que se vê por aí.
A oferta é vasta, o que dificulta a escolha. Pedimos conselho ao jovem que vem à mesa, acabando por optar por meia-dose de coelho bêbado estufado e meia-dose de vitela assada, porque as doses são generosas. Vieram acompanhadas pelas tradicionais batatinhas assadas além de legumes salteados. O coelho estava delicioso, com um molho espesso que fazia lembrar o do javali do Vallecula, enquanto a vitela, em fatias, era extremamente tenra e também com um molho apetitoso.
Para sobremesa um doce também referenciado na casa: o doce das formigas, que actualmente tem réplicas conhecidas em todo o país. É o doce em camadas com leite-creme, bolacha e natas, com granulado de chocolate por cima. Mas este estava mais cremoso do que é habitual.
Para regar tão requintada refeição, um vinho do Dão como se impunha na região. Provou-se primeiro um pequeno jarro de vinho da casa, que não agradou por ser muito agreste. Pediu-se então meia garrafa de Paço dos Cunhas de Santar, de 2004, que revelou a elegância e suavidade tão características dos bons vinhos do Dão. Não é o melhor que já bebemos, mas faz jus a uma qualidade média que não envergonha ninguém. O preço também não foi exorbitante para a bitola habitual em restaurantes: 6 €.
Ponderados todos os parâmetros de avaliação, ficamos indecisos acerca da nota que havemos de dar. Não há defeitos a apontar em nenhum item, mas ainda temos na memória o jantar memorável do Vallecula, pelo que parece inevitável tirar uns pozinhos a este. Foi excelente, mas não tão exuberante, pelo que vamos dar-lhe meio ponto a menos. Mas é, sem dúvida, um local a voltar quando se passar por Viseu.

Kroniketas, enófilo esclarecido

Restaurante: O Cortiço
Rua Augusto Hilário, 45
3500-089 Viseu
Telef: 232.423.211
Preço médio por refeição: 20 €
Nota (0 a 5): 4,5

Vinho: Paço dos Cunhas de Santar 2004 (T)
Região: Dão
Produtor: Dão Sul, Sociedade Vitivinícola

Grau alcoólico: 13%
Preço em restaurante: 6 €
Nota (0 a 10): 7

sexta-feira, 19 de maio de 2006

O feliz regresso do Barca Velha



Artigo publicado na “Revista de vinhos” nº 197 de Abril de 2006, assinado por João Afonso, que aqui reproduzimos com a devida vénia


«Depois de alguns anos de interregno, aí está mais um Barca Velha. Se é que se pode utilizar a expressão “mais um” a respeito desde tinto de 1999, um vinho portentoso que certamente ficará na história como um dos melhores Barca Velha de sempre.
Escrever sobre o Barca Velha, ou sobre qualquer outro ícone, tem sempre algo de redundante. Todos sabemos que é o vinho português mais conhecido, ou pelo menos aquele que é conhecido há mais anos como um dos exemplos da qualidade máxima portuguesa em vinhos. Mas neste caso a redundância é apenas uma questão de justiça...

VINHO DE PACIÊNCIA
“Eu levo tempo a ter certezas!” São palavras de José Maria Soares Franco, líder da equipa de enologia da Casa Ferreirinha que por vezes também usa a pergunta ao contrário, “ou será o próprio vinho que leva tempo a ter certezas?!”
Esperar e voltar a esperar. Procurar sentir se o vinho que está há anos dentro da garrafa merece ou não ser abençoado com a distinta graça de “Barca Velha”. Em média a espera ronda os 7 anos mas há casos em que leva mais tempo.
E esperar é coisa que já não se faz nesta sociedade. Simplesmente porque não há tempo para esperar. O tempo fugiu-nos, deixámos de o ter. A todos nós mas não ao Barca Velha. Este ainda tem todo o tempo de que precisa. De tal modo que o de 1999 foi aprovado e lançado mas há uma colheita anterior (1998) que, segundo a equipa de enologia, pode ainda “vir a palco”. É tudo uma questão de prova, de entendimento (vinho / enólogos)... e de tempo.
Por oposição a este conceito temos a grande maioria dos outros vinhos que parecem autênticos adolescentes - sempre com a perninha a tremer, desejosos de sair à rua e de se mostrar.
À pressa deste mundo moderno junta-se a banalização e estandardização de tudo. Chamam-lhe globalização. Todos diferentes e todos iguais lutando com as mesmas armas de capitalização de recursos sem termos tempo de olhar para trás ou para pensar se de facto é este o caminho que nos interessa. São as necessidades de um mercado voraz cada vez mais castrador de vontades e sonhos próprios. Produtos novos, de preferência todos os dias, se possível com a imagem melhorada e peço rebaixado e, claro está, sempre fáceis - porque andar ou mesmo pensar é coisa que se usa cada vez menos. Na questão da bebida, que é o nosso tema de sempre, prefere-se o doce, pouco ácido, nada rugoso e, de preferência, NOVO. É isto que se vende. Entre duas colheitas do mesmo vinho a maioria dos consumidores levará o mais jovem. Novidade é sempre a novidade.
Mas o Barca Velha mantém-se vivo e bem vivo apesar de alheio a este rodopio de conceitos e conteúdos mais ou menos vazios. A ele, conceito e conteúdo não lhe faltam.

VINHO DE CONCEITO
As melhores uvas das castas Touriga Franca, Touriga Nacional, Tinta Roriz e Tinto Cão vindas principalmente da Quinta da Leda foram totalmente desengaçadas, suavemente esmagadas e vinificadas em cubas de inox. Durante a fermentação fizeram-se remontagens intensas, e depois desta terminar, uma maceração a quente durante mais três semanas cuidou de que “tudo” o que de bom as uvas transportavam consigo fosse deixado no vinho. Depois de terminada a fase de “embrião” o vinho foi transportado para V.N. de Gaia e acondicionado em barricas de carvalho francês novo durante 12 a 18 meses. Durante este período foi acompanhado de muito perto e no final, depois de inúmeras provas e análises de lotes e das barricas existentes, decidiu-se engarrafar o potencial Barca Velha que assim entrou no período de "gestação". Mas foram os 5 anos seguintes que determinaram se o Barca Velha 1999 chegaria ou não a nascer.
É aqui que reside a nobreza deste vinho e deste conceito criado por Fernando Nicolau de Almeida e escrupulosamente honrado e seguido pelos enólogos da Casa Ferreirinha - esperar para ter certezas de que o consumidor é servido apenas com o melhor!

VINHO DE EXCELÊNCIA
Não é suficiente ter excelentes uvas e excelentes barricas, como normalmente acontece com a maioria dos vinhos Premium que hoje se comercializam, também é preciso que o tempo não arraste consigo o pequeno quinhão de eternidade que lhe é próprio. Durante as primeiras 4 décadas de história houve quatro Barca Velha nos anos 50s, três nos 60s, apenas um nos 70s, quatro nos 80s e três nos 90s. Em cerca de 50 oportunidades este vinho só viu a luz do dia em 15 colheitas.
Os vinhos das décadas de 80 e princípios de 90 foram muitas vezes desconsiderados injustamente. Saíam a mercado na fase em que os aromas primários tinham dado o lugar aos secundários e a concentração de prova tinha dado lugar à elegância. E o público irreverente e cada vez mais entusiasta dos vinhos novos, gordos e cheios de fruto argumentava – “o Barca Velha já não é o que era”.
Mas o enorme prestígio construído e cimentado neste conceito de exclusividade resistiu a modas menos favoráveis e o lançamento de cada novo Barca Velha nunca deixou de ser um acontecimento. Este último é-o duplamente.
O novo Barca Velha 1999 além de ser um grande vinho é uma “bofetada” de luva branca em todos aqueles que nos últimos anos se entretiveram a menosprezar este “velho senhor”. Com sete anos de idade tem tudo para se lhe chamar um vinho jovem. Exuberante no seu porte, atlético, requintado e clássico representa tudo o que a nobre tradição tem para oferecer a este Mundo desenfreado - uma lição de saber e de tempo.
Nota: Não se esqueça de colocar em pé a sua garrafa de Barca Velha (deste ou qualquer outro) no dia anterior ao seu consumo e de decantar cuidadosamente o vinho uns momentos antes de o servir. Seja exigente e rigoroso com a temperatura de serviço - nunca fora dos 17°-18°. Faça Verão ou Inverno.»

Kroniketas, enófilo esclarecido

domingo, 14 de maio de 2006

Krónikas duma viagem ao Douro - 5

No meu copo, na minha mesa 44 - Planalto; Cacho D’Oiro (Régua)

De passagem por Peso da Régua, uma sugestão dum guia de restaurantes encaminha-nos para o centro da cidade à procura do restaurante Cacho D’Oiro. A procura não é grande, porque aparece uma placa a indicar o restaurante num beco sem saída. Há uns quantos lugares para estacionar, mas é preciso fazer umas quantas manobras para virar o carro no pouco espaço disponível sem bater nos que lá estão.
Franqueada a porta, encontramos um espaço amplo, com escada para um andar superior e mesas em quantidade. É sábado ao almoço, pelo que é fácil sentar, mas a pouco e pouco começam a chegar grupos de pessoas que acabam por lotar o espaço.
A ementa é variada dentro dos pratos normais na região. Escolheu-se uns filetes de polvo e um cabrito assado. Os filetes são tenros e saborosos, mas trazem um acompanhamento pouco adequado, batatas fritas, o que torna necessário pedir arroz branco. Não há mais nenhum, nem de tomate nem de feijão, o que se lamenta. O cabrito cumpre aquilo que sempre se espera deste prato, com acompanhamento de batatas e legumes.
Para acompanhar pediu-se vinho branco Planalto, da Sogrape. É um vinho de cor citrina seco e aromático, frutado quanto baste, com boa acidez que vai muito bem com os filetes e bebe-se de forma gulosa. Não sendo muito leve, acompanha pratos de peixe com algum tempero, mas não convém exagerar. Convém mantê-lo num frappé ou numa manga de refrigeração para que não aqueça durante a refeição.
O atendimento é simpático e eficiente, com pessoal jovem e solícito que responde rapidamente às chamadas. A refeição é satisfatória, mas nada de extraordinário nem de nos deixar de boca aberta. Ou seja, estando na Régua vale a pena ir lá, mas não valerá ir lá de propósito como a Valhelhas para ir ao Vallecula.

Kroniketas, enófilo esclarecido

Restaurante: Cacho D’Oiro
Rua Branca Martinho
5050-292 Peso da Régua
Telef: 254.321.455
Preço médio por refeição: 20 €
Nota (0 a 5): 3

Vinho: Planalto (B)
Região: Douro
Produtor: Sogrape
Grau alcoólico: 12,5%

Castas: Malvasia Fina, Viosinho, Gouveio
Preço em feira de vinhos: 3,95 €
Nota (0 a 10): 7

quarta-feira, 10 de maio de 2006

Krónikas duma viagem ao Douro - 4

Nas margens do Douro





Depois do momento sublime que foi a visita à Quinta da Ervamoira, chegou a etapa que nos levaria ao principal objectivo da viagem: em direcção ao rio Douro. Na zona de Vila Nova de Foz Côa o rio parece perto, mas ainda está muito longe da vista. É preciso andar quilómetros para o encontrarmos. Seguindo para norte pode-se chegar ao Douro no Pocinho, outro ponto de referência na região, mas optamos por procurar o rio mais a jusante e deixamos o Douro Superior rumando em direcção à Régua, mergulhando profundamente no coração da Região Demarcada.

Por estradas sinuosas e montanhas a perder de vista, é-nos dado contemplar a profusão de vinhas que forram aquelas encostas: é a paisagem omnipresente ao longo de intermináveis quilómetros. O aspecto mais curioso que o viajante encontra, enquanto avança lenta e cuidadosamente pelas serras, é o facto de aparecerem grandes placas no meio das vinhas a indicar o nome das empresas proprietárias. E assim nos vamos cruzando com alguns nomes que costumamos ver nos rótulos das garrafas: Ferreira, Real Companhia Velha, Quinta de Ventozelo, Quinta de La Rosa, Quinta do Vallado, Quinta Seara D’Ordens, etc. O que também chama a atenção é a diferença do estado evolutivo das uvas nestas vinhas em relação àquelas que vemos no centro e sul do país. Aqui estão muito mais atrasadas, com as folhas ainda a rebentar timidamente, enquanto no Ribatejo e na Estremadura já existe uma folhagem bem mais exuberante. Mesmo no microclima da Ervamoira, o calor ainda não chegou para amadurecer a vinha.

Há muito caminho para andar até passar por São João da Pesqueira e continuar a lenta aproximação ao rio. A todo o momento esperamos ver uma nesga de água no fundo do vale. Quando finalmente vemos o leito espreitar por trás duma curva já estamos a descer a encosta. Quando o relevo se aplana um pouco, ele aí está diante dos nossos olhos, o Douro, ladeado por margens imponentes. Estamos numa encruzilhada onde o Pinhão está ali mesmo ao pé. Hoje ficamos ali, junto à famosa estação dos comboios, com o Vintage House Hotel logo a seguir e o rio frente à nossa janela. Ali se junta o rio Pinhão ao Douro, permitindo-nos passear nas margens de ambos.

No dia seguinte é o momento há tanto ansiado: o passeio ao longo da margem esquerda em direcção à Régua. Como se esperava, o espectáculo é deslumbrante e motiva diversas paragens para fotografias, ao mesmo ritmo dum casal num BMW que pára nos mesmos locais. Mesmo junto à estrada deparamo-nos com uma quinta da Porto Ferreira, com o nome na porta e lá em cima, na encosta. Nesta região o nome Ferreira repete-se várias vezes na margem direita juntamente com outros nomes conhecidos de empresas de vinhos do Porto, como Taylor’s, Offley, ou Cálem.

A meio caminho ainda vale pena parar na barragem da Régua para espreitar as comportas por onde os barcos de cruzeiro sobem e descem, já próximo da Régua passamos por Folgosa e paramos quase com os pés dentro de água.

Em Peso da Régua aparece uma figura mítica no cimo dum monte: o boneco da Sandeman, o homem da capa negra. Ali estaciona um barco rabelo das Caves do Castelinho. Depois do almoço ainda vale a pena apanhar a estrada para Vila Real e subir ao miradouro a meia-dúzia de quilómetros onde, passeando pelo meio de mais uma vinha, vemos toda a região em redor, com umas curvas do Douro lá em baixo e a serra do Marão ao longe. Aqui termina a melhor etapa da viagem, iniciada com a visita à Quinta da Ervamoira. O caminho agora é para sul e o Douro vai ficar definitivamente para trás.

Kroniketas, enófilo esclarecido

PS: Neste como nos posts anteriores, sugere-se que clique nas fotos para vê-las ampliadas.

domingo, 7 de maio de 2006

No meu copo 43 - Planura Reserva 2002

A Unicer é conhecida sobretudo pela produção de cervejas, sendo uma das grandes distribuidoras em Portugal (Super Bock, Carlsberg e Tuborg são as suas marcas mais famosas). Também distribui algumas marcas de água e há poucos anos resolveu lançar-se na produção de vinhos. Já me cruzei algumas vezes, quase por acaso, com vinhos desta empresa. E o que posso dizer sobre isso?
Na região de Setúbal a Unicer produz o Vinha das Garças, que uma vez recebi como oferta. A prova realizada em família mereceu a opinião unânime de que o vinho não tinha categoria (uma opinião foi mesmo mais crua: “não presta para nada”). Como não era muito conhecido, passei adiante e esqueci.
No passado Outono as Krónikas Tugas deslocaram-se ao “Encontro com o vinho e sabores”, e do evento demos conta em devido tempo. Entre as muitas provas efectuadas calhou começarmos pelo stand da Unicer. Foi-nos dado a provar um Vinha do Mazouco, do Douro, que não encantou nem mereceu grandes encómios da parte dos presentes, pecando pela falta de corpo e estrutura na boca. Também provámos um Planura Reserva e um Syrah, que não acrescentaram nada ao que já conhecemos no Alentejo, e também se perderam na memória das coisas pouco importantes.
Agora sentado à mesa do restaurante, resolvi voltar a insistir no Planura Reserva para ver o que dava. O vinho foi decantado e servido em copos de pé alto e boca larga, portanto teve todas as condições de serviço para mostrar o que vale. E vale pouco.
Apesar de todos os requisitos cumpridos no serviço, o vinho voltou a não convencer. Desde logo apresenta 14% de álcool, o que parece estar a tornar-se uma moda sem sentido, agora que quase todos os vinhos do Alentejo têm para cima de 13 graus, o que é um exagero. O problema é que nem todos sabem fazer vinhos como a Herdade do Esporão, que nos apresenta 14 e até 15 graus de álcool mas tão bem envolvidos no corpo do vinho que nós o bebemos e não damos por nada. No caso deste Planura Reserva 2002, é dito no contra-rótulo que foi feito com as castas Alicante Bouschet, Cabernet Sauvignon, Aragonês e Trincadeira, estagiando 9 meses em madeira. Aparentemente, tem tudo para ser um excelente vinho. A verdade é que o pomos na boca e é agreste, o álcool arranha, o corpo não envolve o álcool, o aroma é pouco exuberante e o sabor é vulgar. Mais uma vez os vinhos Unicer não provaram.
Resta dizer que não é mencionado no contra-rótulo de que zona do Alentejo são provenientes as uvas que deram origem ao vinho, pelo que ficamos na completa ignorância a esse respeito.
Depois de várias experiências sempre com o mesmo resultado, apetecia-me dar um conselho à Unicer: dediquem-se apenas às cervejas e deixem-se de aventuras vinícolas, porque não têm vida para isto.

Kroniketas, enófilo esclarecido

Vinho: Planura Reserva 2002 (T)
Região: Alentejo
Produtor: Unicer
Grau alcoólico: 14%

Castas: Alicante Bouschet, Aragonês, Cabernet Sauvingon, Trincadeira
Preço no restaurante: 10 €
Nota (0 a 10): 4

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Krónikas duma viagem ao Douro - 3

Quinta da Ervamoira






Ponto alto da viagem foi a visita à Quinta da Ervamoira, propriedade da casa Ramos Pinto no Douro Superior, situada na zona de Vila Nova de Foz Côa, perto da aldeia de Muxagata, em pleno parque arqueológico. Adquirida em 1974 por José António Ramos Pinto Rosas (descendente do fundador Adriano Ramos Pinto), que sonhou fazer ali um local de eleição para a produção de vinho, esta quinta possui condições de solo e de clima (edafoclimáticas, como dizem os entendidos) quase únicas e é um local privilegiado para o cultivo da vinha. Localizada numa zona montanhosa mas a baixa altitude (cerca de 150 metros), está rodeada de montanhas que criam um microclima propício a um bom amadurecimento das uvas (no pico do Verão as temperaturas na quinta podem atingir os 50º C), o que permite fazer a vindima muito mais cedo do que na maioria das outras quintas da Região Demarcada do Douro. É um dos locais que teriam ficado submersos pela Barragem de Foz Côa, se esta tivesse sido construída. Depois de visitá-la, só podemos dizer: ainda bem que não fizeram a barragem!

A Casa Ramos Pinto foi fundada em 1880 por Adriano Ramos Pinto e é conhecida sobretudo como produtora de vinho do Porto, de que podemos encontrar variadíssimas marcas no mercado, tendo mesmo uma garrafa de Porto Ramos Pinto sido enviada no avião de Gago Coutinho e Sacadura Cabral quando estes realizaram a travessia do Atlântico Sul. Foi já na Quinta da Ervamoira, uma das quatro que a Ramos Pinto possui na Região Demarcada do Douro (as outras são a Quinta dos Bons Ares, a Quinta do Bom Retiro e a Quinta da Urtiga), que a Ramos Pinto começou a produção de vinho de mesa, precisamente com a colheita de 1990 do Duas Quintas (que tive o privilégio de conhecer), a que já fizemos referência no início da existência deste blog.

Sob a direcção de João Nicolau de Almeida, sobrinho de José Rosas e filho de Fernando Nicolau de Almeida (o criador do famoso Barca Velha, produzido pela Casa Ferreirinha a partir da Quinta da Leda, situada ali perto, na freguesia de Almendra), que é simultaneamente administrador e enólogo na Ramos Pinto, nos 200 hectares da Quinta da Ervamoira foram plantados de raiz 180 hectares de vinha, com grande predominância de uvas tintas de que foram seleccionadas as 5 melhores castas recomendadas para a região: Touriga Nacional, Tinta Roriz, Touriga Fancesa, Tinta Barroca e Tinto Cão. Esta vinha é considerada um modelo na região do Douro pois foi, segundo os seus responsáveis, a primeira a ser plantada com as vinhas ao alto (em vez dos habituais socalcos na horizontal das encostas mais íngremes) e com as castas separadas por talhões.

Na Quinta da Ervamoira o visitante sente-se num local paradisíaco, em perfeita comunhão com a natureza, onde apetece ficar sentado a contemplar aquela imensidão de vinha tão bem organizada e a perder de vista, numa perfeita harmonia com a paisagem envolvente. Ouvidas as explicações da guia, quase nos sentimos tentados a ir para lá ajudar no que deve ser um trabalho fascinante. João Nicolau de Almeida manda proceder a análises das uvas diariamente durante o período da vindima, o que determina os talhões onde as uvas vão sendo colhidas em função da sua maturação e grau alcoólico. As uvas seleccionadas durante a vindima são transportadas para a Quinta dos Bons Ares, situada mais a Oeste, onde a Ramos Pinto possui um dos seus centros de vinificação. Para produzir o Duas Quintas são vinificadas também as uvas desta quinta, dando então origem ao Duas Quintas (branco e tinto). Da Ervamoira também saem uvas para vinhos do Porto, havendo até um Tawny de 10 anos com o nome da própria quinta.

Para além da contemplação da paisagem, a visita inicia-se numa casa-museu onde nos é contada a história da Ramos Pinto e da própria quinta, que antes de pertencer à Ramos Pinto tinha o nome de Quinta de Santa Maria. Nela estão presentes variados achados arqueológicos para além de diversas ilustrações sobre o ciclo de cultivo da vinha, da história da quinta e dos vinhos da casa. No final é feita uma prova de vinho do Porto acompanhada de castanhas com amêndoa. Para grupos numerosos a prova pode contemplar um Porto Vintage com explicações detalhadas sobre a produção do vinho e há também a opção de fazer um almoço regional na quinta, desde que haja número suficiente de interessados.

Depois de sair da Quinta da Ervamoira sentimo-nos mais ricos e sabedores. Embora longe, fica uma certa nostalgia de nos virmos embora e uma secreta vontade de um dia lá voltar. Talvez numa fase mais adiantada de maturação das uvas ou até após a época da vindima, quando as cores das folhas que vão morrendo a pouco e pouco enchem as encostas duma multiplicidade de tonalidades admiráveis.

Até um dia!

Kroniketas, enófilo esclarecido

PS: Sugre-se a utilização dos links assinalados para consulta de mais informações acerca da Casa Ramos Pinto, da Quinta da Ervamoira e das outras quintas (com fotografias e mapas de localização) e dos vinhos da casa.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

Na minha mesa, no meu copo 42 - Adega e Presuntaria Transmontana; Quinta dos Aciprestes 2003

Já de alguns anos a esta parte que as margens do Douro na zona do Porto deixaram de ser de faina fluvial e começaram a abrigar outras espécies. A velha Ribeira rejuvenesceu e apareceram restaurantes e bares que trouxeram outras gentes às suas ruas. Um pouco mais tarde, do outro lado do rio assistiu-se a outra pequena revolução: quase toda a zona de cais perto das caves de vinho do Porto foi reconstruída e aí, da ponte de Dom Luís até bem mais à frente, na direcção da foz do rio, surgiu o que podemos apelidar de émulo das docas de Lisboa.
A zona é absolutamente privilegiada e dos restaurantes, cafés, bares e outras lojas que ocupam os pavilhões construídos à beira-rio pode desfrutar-se da melhor vista sobre o Porto, tanto à luz do dia como de noite.
Além dos pavilhões construídos de origem, também as antigas fachadas que dão para o cais se foram reconvertendo e os restaurantes são mais que muitos, incluindo até uma das sortidas do famigerado Tromba Rija fora de Marrazes.
Praticamente ao lado deste existe outro, denominado Adega e Presuntaria Transmontana II, e que foi a evolução natural da adega original, situada numa rua perpendicular, um pouco mais acima na encosta de Gaia. Este número II já era meu conhecido e sempre fora servido a contento mas, na última tentativa para lá nos amesendarmos, lugares era coisa que não havia… Foi então que o patrão Lopes, proprietário do local, nos sugeriu uma visita ao número I, acabadinho de remodelar e por isso ainda pouco conhecido dos frequentadores da zona e portanto com lugares livres que chegavam para o nosso jantar. E assim seguimos o sr. Lopes e cinco minutos depois (a pé) estávamos num simpático espaço que ainda cheirava a novo. Da antiga “tasca” nem rasto, talvez só a configuração do espaço no rés-do-chão. Este piso alberga algumas poucas mesas, um balcão à entrada e a cozinha, e era o espaço original da adega, mas a remodelação também foi ampliação e agora uma escada leva-nos a um 1º piso que acaba por ser a verdadeira sala de jantar do restaurante.
Para começo da contenda é logo servido um Porto branco, doce e fresquinho, que acaba por preparar o estômago para o que vem a seguir. Não sendo um gémeo do tromba rija, também aqui as entradas são importantes no repasto total, e assim que nos sentamos temos logo várias tábuas com diversos enchidos, presunto, diferentes queijos e bom pão. Ficam por lá também uma travessinha com alcaparras (azeitonas britadas) e uns lombos de biqueirão em vinagrete que são uma delícia! Trazem-nos ainda um agradável folhado de farinheira, quentinho, e outras coisinhas boas que se me apagaram da memória, em virtude talvez de algum acontecimento mais etílico.
Escolheu-se para prato principal uma posta de carne à transmontana, que apareceu tenríssima e no ponto, bem temperada com abundância de alho e já trinchada em tiras manuseáveis, acolitada por batatinhas a murro e legumes salteados servidos a sair do lume na própria frigideira.
Depois disto tudo ainda tivemos de arranjar espaço (porque vontade havia) para nos dirigirmos ao estendal de doces e frutas que se anicha numa das pontas da sala. Desde trouxas de ovos a pudim do Abade de Priscos, de leite-creme queimado a sopa dourada, de mousse de chocolate a arroz-doce e a aletria, há de tudo e bem feito. Sim, também há muita fruta para quem quiser.
E que beberagem nos acompanhou nesta prova de fogo, perguntarão? Apesar da qualidade, também a Adega sofre do mal da maioria dos restaurantes portugueses: tentamos “promover” o consumo de bom vinho com preços exorbitantes! A lista está composta, embora não seja muito extensa, e lá consegui encontrar um vinho que não me pareceu demasiado dispendioso e que nos podia garantir qualidade. Escolhi um Quinta dos Aciprestes, Douro DOC, obviamente tinto. Conheci este vinho quando do seu lançamento, talvez há uns cinco anos, quando o promoviam no Jumbo e que, se bem me recordo, me custou 700 dos velhos escudos por botelha. Na altura gostei, embora não me tenha parecido excepcional. E foi baseado nessa recordação que o escolhi, ciente de que mau vinho não era. Pois bem, o bicharoco excedeu as minhas expectativas e revelou-se opaco, quase rubi na cor, e com uma primeira impressão que nos trouxe à memória um vintage ou LBV novos. A boca andava ali à roda dos frutos vermelhos, com um final complexo que levava ao próximo golo com facilidade. Passou a fazer parte da minha lista de compras para as próximas feiras, nos ainda longínquos Setembro e Outubro.
Concluindo, já tinha a Adega e Presuntaria Transmontana como um bom poiso para refeiçoar nas minhas idas ao Porto, mas esta ocasião revelou-se mais saborosa do que as últimas, sabe-se lá porquê.
Os convivas são geralmente presenteados com miniaturas de Vinho do Porto, de produção do proprietário, e agora também com azeite.
Já para lá tínhamos ido de táxi e de táxi voltámos para o hotel. O que é que vocês estavam a pensar?

tuguinho, enófilo esforçado

Restaurante: Adega e Presuntaria Transmontana II
(daqui podem partir para a I, que é mais difícil de encontrar)
Avenida Diogo Leite, N.º 80
4400 - 111, Vila Nova de Gaia
Telef: 223.758.380
Preço médio por refeição: 30 €
Nota (0 a 5): 4

Vinho: Quinta dos Aciprestes 2003 (T)
Região: Douro
Produtor: Real Companhia Velha
Grau alcoólico: 14%

Castas: Touriga Francesa, Tinta Roriz, Tinta Barroca
Preço no restaurante: cerca de 14 €
Nota (0 a 10): 7,5