O tempo é sempre uma surpresa. Para o bem ou para o mal. Costuma-se dizer que o tempo faz aos vinhos o mesmo que faz aos homens: apura os bons e azeda os maus. O problema é que nem sempre sabemos se o que se esconde por detrás da máscara, ou dentro da garrafa, é bom ou mau.
Guardar vinhos é uma aposta arriscada. Quantas vezes cada um de vós já foi buscar “aquela” garrafa que estava ali guardada para uma ocasião especial e ao abri-la o vinho estava passado, azedo, em vinagre? Quantas vezes uma rolha em mau estado deixou o líquido impróprio para consumo, ou se desfez dentro do gargalo? Mesmo nos não muito velhos às vezes isso acontece, quanto mais em vinhos com mais de uma década...
E há uma década faziam-se vinhos para guardar. Alguns diziam mesmo para aguentar durante 10 anos. Hoje são raros aqueles em que existe essa indicação, raríssimos os que nos dizem para aguentar durante 20 anos. Quando vêm para o mercado, na maior parte dos casos já esperaram o tempo suficiente para estarem no ponto certo para beber. E no entanto, quem não teve já aquela curiosidade de saber como é que aquele vinho estará daqui a uns anos, se agora está assim? Será que ainda pode melhorar?
Pois foi isso que este vosso amigo fez, precisamente há uns 10 anos. A casa era mais pequena, não havia arrecadação, a garrafeira começou a crescer e os vinhos começaram a passar da despensa para a casa de banho. Havia que dar uma solução àquilo. E a solução foi pegar numa série de prateleiras, pô-las no carro e levá-las para longe, de noite para não apanharem calor, algures para uma cave duma casa no Alentejo. Foram bastantes. Ainda lá estiveram umas 30 ou 40 garrafas (ou talvez mais, não me lembro ao certo) que se foram abrindo quando lá ia. Quantas se revelaram já fora de prazo, adocicadas, parecendo mais vinho do Porto...
E no entanto... Há alguns meses resolvi trazer o que restava do stock de regresso. Cobertas de pó, com os rótulos meio desfeitos pela humidade. Havia que saber em que estado aquilo estava. Ficaram na arrecadação e comecei a trazê-las para cima a pouco e pouco. Uns bifinhos bem temperados eram um bom pretexto para abrir uma delas. O que teria o tempo feito a estes vinhos?
Eram todos do Dão e, sobretudo, da Bairrada. Muitos da Bairrada. Os primeiros foram abertos no Encontro de Eno-blogs na York House: dois Messias Garrafeira de 83, que surpreenderam os presentes. Até a mim. Estavam bons, já muito evoluídos mas sem sinais de estragos. Isso entusiasmou-me a continuar.
Comecei por um São Domingos de 91, comprado em 94. As Caves São Domingos não têm tido grande destaque no panorama nacional, e mesmo na região. Não se vêem muitos por aí. Este, quando o comprei, era quase imbebível, de tão adstringente. Era daqueles Bairrada que em novos só os apreciadores conseguem provar. Estava espectacular. Uma cor carregada, ainda fechada, aromas profundos bem marcados pela casta Baga, aromas terciários que vêm pelo copo acima, aquele aroma que se aspira sem parar e quase parece eterno e que até hoje só encontrei nos vinhos velhos da Bairrada. Na prova de boca, um corpo envolvente e robusto, mas com os taninos completamente amaciados por mais de uma década de repouso. Um grande vinho, daqueles que dão um prazer imenso a beber. O tempo foi-lhe benéfico.
Seguiu-se um Casa de Saima Reserva de 91. Outro que em novo poucos conseguiriam beber. Comprado em 95. Uma rolha impraticável. O saca-rolhas furou-a pelo meio e, assim como entrou, saiu. A rolha ficou lá no mesmo sítio, inamovível, e os destroços provocados pelo saca-rolhas ficaram dentro do líquido. As perspectivas eram as piores. Nova tentativa e era como se a rolha não estivesse lá. Tentei com um daqueles com duas patilhas, que tentam agarrar a rolha pelos lados, junto ao gargalo, mas ela não saía. Só restou a faca, com a qual tentei puxá-la aos bocados. E foi aos bocados que ela acabou por se ir desfazendo, até que não restou alternativa a não ser empurrá-la para dentro da garrafa.
Foi um processo demorado. Tive que recorrer ao decanter e a alguns filtros de café, que estão ali para estas emergências. Despejei o líquido pacientemente para dentro do decanter, em pequenas porções até ensopar o filtro. Foram uns 10 minutos nisto. No final consegui livrar o vinho dos destroços da rolha e a maior parte ainda ficou na garrafa. As fotos de cima mostram o estado em que a rolha ficou dentro da garrafa.
E na prova? Ainda melhor que o anterior. Fantástico. Um verdadeiro Bairrada à moda antiga. Nem um leve aroma a mofo, nem um toque de contaminação pela rolha, nem sequer um pouco de depósito no fundo. Uma cor quase retinta, retratada na foto, outra vez “aquele” aroma. Fui bebendo sem dar por isso. E quando dei, mais de ¾ da garrafa tinham marchado. Era só ir despejando do decanter para o copo. Uma experiência rara. Esqueci-me completamente dos termos que o pessoal escreve aqui nos blogs. Aromas assim ou assado, balsâmicos, tostados ou cacau? Quais frutos secos ou frutos vermelhos... Que interessa isso? Quero lá saber! Só usufruir daqueles momentos únicos, só eu e o vinho, e os meus bifes com ervas de Provence. Sei lá se vou encontrar mais algum assim... Será que os vinhos têm alma? Se têm, esta estava lá.
Prossegui o périplo por um Messias de 87, comprado em 93. Este mais “normal”, digamos, mas como os anteriores ainda muito bem bebível. Em novo não era tão agreste, pelo que agora não ganhou tantos aromas escondidos. Mas marca bem a diferença com o mesmo vinho de agora. Qualquer semelhança entre este e um Messias de 2003 ou 2004, só mesmo no nome. Mais um clássico, que agora cedeu aos ditames da moda.
Kroniketas, enófilo esclarecido
Região: Bairrada
Vinho: São Domingos 91 (T)
Produtor: Caves São Domingos
Grau alcoólico: 12%
Nota (0 a 10): 8,5
Vinho: Casa de Saima 91 (T)
Produtor: Casa de Saima
Grau alcoólico: 12,5%
Nota (0 a 10): 9
Vinho: Messias 87 (T)
Produtor: Caves Messias
Grau alcoólico: 11,5%
Nota (0 a 10): 7,5
quarta-feira, 11 de junho de 2008
No meu copo 181 - Tintos velhos da Bairrada (1)
Subscrever:
Comment Feed (RSS)
|