quinta-feira, 12 de julho de 2007

O “problema” da açorda de marisco


Vamos lá ver se nos entendemos. Parece que quando emitimos uma opinião com a qual os outros não concordam há tendência para nos atribuírem intenções que nós não tivemos.
Tem havido aqui uma troca de opiniões interessante com os caríssimos comparsas bloguistas do Copo de 3 e do Vinho da Casa, por causa do que escrevi no post anterior acerca de só se comer boa açorda de marisco na região de Lisboa, o que mereceu da parte deles a interpretação de exagero, bairrismo ou arrogância da nossa parte (neste caso minha, porque a opinião só me vincula a mim). Ora não é disso que se trata. Caro Paulo, do Vinho da Casa, nós não somos bairristas, eu pelo menos não sou: sou apenas um alentejano importado para a capital, portanto se fosse bairrista era com a minha região de origem. E como deves calcular conheço muito bem a geografia desta região. Belém não é Algés, Algés pertence a Oeiras, como Massamá pertence a Sintra. Quando me refiro a Lisboa, obviamente, não estou a restringir-me à cidade mas à zona da “Grande Lisboa”, tal como Vila Nova de Gaia, Maia ou Gondomar pertencem ao “Grande Porto”.
Como referi no último comentário que escrevi no post anterior, o que foi dito para a açorda de marisco (apenas porque, por acaso, era de açorda de marisco que estava a falar) podia perfeitamente aplicar-se a outros pratos regionais tão variados como arroz de sarrabulho (Minho), tripas à moda do Porto (Porto), leitão à Bairrada ou chanfana (Beira Litoral), sopa de pedra (Ribatejo), migas com entrecosto (Alentejo) ou amêijoas na cataplana (Algarve). Para que não houvesse dúvidas nem confusões socorri-me do livro “Cozinha Tradicional Portuguesa”, da Maria de Lurdes Modesto, onde até é referido especificamente o local de origem de alguns pratos. O arroz de sarrabulho é de Viana do Castelo, as tripas, obviamente, são do Porto, o leitão é da Bairrada com maior incidência na Mealhada, a sopa de pedra é de Almeirim. Assim como esse delicioso bolo alentejano que é a sericaia, que se vê um pouco por todo o lado, é de Elvas.
O que eu quero dizer, de forma mais abrangente, é que há pratos regionais que acho que só vale a pena comer na sua região de origem, simplesmente porque, daí para fora, não os sabem fazer. Claro que vocês podem não concordar e achar que isto é um perfeito disparate, mas a experiência que tenho tido com pratos regionais fora da sua região, até agora, só me leva a manter esta opinião. A não ser que encontrem restaurantes regionais (que os há, claro, e bons) onde os possam comer, não vale a pena. Diz-nos o João do Copo de 3, e bem, que no Galito, em Lisboa, se come uma excelente sopa de cação e migas com entrecosto. Aí está: é um restaurante alentejano, dos mais conceituados que existem pelos lados da capital. Os donos são alentejanos e trouxeram a cozinha da sua região, tal como aliás há outros de bom nível. Um deles, já o referimos aqui: o Alqueva, na Amadora. Outro é o António do Barrote, em Carnide. E há um a que nunca fui mas ao qual tenho visto boas referências, o Ganhão, na Venda Nova. Uma coisa é falar de restaurantes alentejanos, com comida feita por alentejanos; outra é ir a um restaurante qualquer, sem nada de tipicidade ou regionalismo, comer uma comida de uma região que não sabem confeccionar. Aliás, caro João, se entrares num restaurante qualquer em Lisboa e vires escrito na ementa “sopa alentejana”, sabes o que é? É a açorda que se faz no Alentejo. Eu não arriscaria comê-la num restaurante desses. A começar desde logo pelo pão, porque eles não têm o pão que se faz no Alentejo e que é usado nessa açorda.
Aliás, quando viajo pelo país normalmente tento provar os pratos regionais dos locais por onde vou passando. Se se derem ao trabalho de consultar alguns artigos que escrevi em Maio do ano passado, sob o título “Krónikas duma viagem ao Douro”, poderão confirmá-lo. Agora digam-me uma coisa: têm visto muitos restaurantes, pelo país fora, onde se coma sopa da pedra? É que se não for de algum ribatejano, duvido que a saibam fazer. E tripas à moda do Porto, haverá no Alentejo? E arroz de sarrabulho, será que o sabem fazer no Ribatejo? E a posta mirandesa que se come por aí, será que é como a que se come em Trás-os-Montes (a esta questão não posso responder porque nunca comi a genuína)? E os intermináveis locais onde se vende leitão “à moda” da Bairrada, será que o fazem como os da Mealhada? Até hoje não encontrei nenhum. Em Lisboa há uma pálida imitação, o leitão de Negrais, mas não passa disso mesmo: uma pálida imitação.
Diz-nos o Paulo, do Vinho da Casa, que certamente há muitos locais na costa portuguesa onde se come boa açorda de marisco, desde a Ericeira até à Barra em Aveiro. Pois se os encontrarem digam-me. Neste caso concreto, o que vos posso confirmar é que comi das piores açordas de marisco na nossa costa, em três locais bem distintos: São Pedro de Moel (há um post sobre isso), Zambujeira do Mar e Monte Gordo. Esta última, aliás, não a consegui comer, porque parecia cimento. Outra vez o problema do pão... Eles até diziam que tinham um pão especial para a açorda... Só que enganaram-se no tipo. Nesta questão das açordas e das migas, é preciso saber usar o pão certo. No Alentejo usa-se fatias grande de pão, de preferência duro, na açorda de marisco usa-se carcaças. E o mais importante na açorda de marisco é a consistência do pão e o tempero. E não se trata de despejar lá para dentro todo o tipo de marisco que se encontrar, outro erro muito comum: a comummente chamada “açorda de marisco” não é mais que “açorda de gambas”.
Mas se vocês querem saber o que é a verdadeira açorda de marisco, experimentem o Pap'Açorda ou o Jacinto quando estiverem em Lisboa.
Ah... e já agora: para além dos pastéis de Belém, a açorda de marisco também é um prato típico de Lisboa, assim como o bife à café, o bacalhau à Brás, as ervilhas com ovos escalfados e o arroz de grelos. Vocês sabiam que há locais onde põem café no bife à café? Porque será? Porque não o sabem fazer, porque pensam que o nome “café” tem alguma coisa que ver com a substância “café”, e não tem, tem que ver com os locais onde o bife surgiu, porque era servido nos cafés de Lisboa, derivando do Bife à Marrare. Quantos restaurantes haverá por este país fora onde saibam exactamente como se faz um bife à café?

Kroniketas, gatrónomo esforçado