segunda-feira, 6 de março de 2006

Reflexões à volta da garrafa (3) - Fácil de beber é mau?

(republicação adaptada; post original de 25 de Julho de 2004, nas Krónikas Tugas)

Tínhamos ficado a dissertar sobre os fundamentalismos acerca da qualidade dos vinhos de cada região. Afirmei no post anterior que é errado colocar uma região acima das outras só por uma questão de princípio. Existe uma certa corrente que faz crer que os vinhos do Douro são melhores que todos os outros. Sempre ressalvando que é tudo uma questão de gosto, devo dizer que não concordo, porque mesmo nalguns parâmetros objectivos em que o vinho deve ser apreciado, a região do Douro tem sido aquela em que tenho apanhado mais e maiores decepções, por razões diversas.
Não é que eu não me esforce por tentar descobrir em todos os vinhos que bebo alguma qualidade, mas já tive uma sucessão de experiências com vinhos de produtores de nome conceituado que não me deixaram saudades. Não sei o que dizer de abonatório quando um vinho não tem corpo, não tem aroma, não tem acidez e quase não tem sabor, mas é o que me tem acontecido vezes demais com os vinhos do Douro. Não quero com isto dizer que não há vinhos excelentes, mas quanto mais alargo o leque de provas nesta região mais concluo que devo ficar pelos mesmos. Dentro daquilo que considero preços decentes (fixei um patamar nos 15 €, que excepcionalmente pode ser um bocadinho alargado, e já não é pouco), alguns exemplos de vinhos que nunca me deixaram ficar mal: Messias Reserva, Scarpa (não sei se ainda existe porque não o tenho visto à venda), Quinta do Côtto, Evel ou Vila Régia. Destaco o Duas Quintas e o Sogrape Reserva (branco e tinto), sem dúvida os meus preferidos nesta região. E naturalmente há o Quinta da Leda e o Callabriga, da Casa Ferreirinha (propriedade da Sogrape) no topo dos topos. Claro que não estou a pensar em vinhos de 30 ou mais euros, porque com um preço desses qualquer vinho tem de ser excepcional, mas não são esses que fazem o padrão médio duma região. Não se pode tomar como bitola o Barca Velha ou o Reserva Ferreirinha, mas o que está ao alcance da generalidade do comprador que procura um vinho de qualidade mas não quer pagar uma fortuna por 7,5 dl de líquido. Eu, pelo menos, é assim que faço as minhas apreciações, embora alguns supostos entendidos na matéria pareçam esquecer-se deste “pormenor” do preço, como se as pessoas que lêem os guias que eles escrevem fossem comprar ao desbarato! Quem faz guias de vinhos não pode ter em conta apenas o seu próprio gosto, mas considerar que se está a dirigir a pessoas que não têm os mesmos parâmetros de avaliação nem sequer as mesmas possibilidades de provar centenas de vinhos de borla!
Neste sentido, volto ao Alentejo para dizer que, não sendo melhor que as outras regiões, tem maior quantidade de vinhos que, pelo conjunto das suas características, são fáceis de beber e de gostar pela maioria das pessoas. São bem encorpados (enchem a boca), são aromáticos quanto baste, geralmente macios porque têm pouca adstringência e estão prontos para beber pouco tempo depois da colheita. O que é que existe de errado aqui? Na minha opinião, nada. São características que resultam em grande parte do clima, onde as uvas atingem um estado de maturação elevado mais facilmente do que noutras regiões do país e até do estrangeiro. Um exemplo de sucesso no Alentejo são os vinhos da casta francesa Cabernet Sauvignon, que já referi como sendo uma das minhas paixões. Por causa do seu maior amadurecimento devido ao clima, mesmo isolada permite obter vinhos muito mais macios do que em Bordéus, donde é originária e onde tem que ser misturada com a Merlot para amaciar o vinho.
Há contudo quem escreva nos guias e tenha a opinião de que “os vinhos do Alentejo são muito fáceis”, dando a esta opinião uma carga pejorativa. Mas eu digo-vos: se querem um vinho tinto que fique bem com quase todos os tipos de comida e agrade ao mais leigo dos consumidores, o Alentejo quase sempre satisfaz. Por isso também há quem diga que é a região da moda. Sem prejuízo das marcas mais caras que citei no post anterior, que são de qualidade muito acima da média, há muito mais por onde escolher com resultados satisfatórios a preços razoáveis (ver As nossas escolhas). Daí a razão de cerca de 1/3 da minha garrafeira ser constituída por vinhos desta região.
Não caiamos, no entanto, no exagero oposto de achar que, por este motivo, só se deve beber vinho alentejano, porque é o único que não arranha ou arranha menos que os outros. Vinho não é groselha, é uma bebida alcoólica e tem que ser apreciada como tal. Por isso há que procurar outras características noutras regiões. Os vinhos do Dão, quanto a mim, são até aqueles que, quando atingem o ponto ideal de envelhecimento, se tornam mais macios sem perderem a acidez. Já partilhei com os comparsas habituais algumas garrafas dos anos 70 e 80 que foram experiências fantásticas de vinhos velhos que mantêm uma elegância incomparável, como não encontrei em mais nenhuma região do país. Ainda não há muito tempo comprovei isso com uma garrafeira de 85 de Dão Messias.
Do outro lado está a Bairrada. São os vinhos mais difíceis porque enquanto novos são muito adstringentes, por isso arranham muito na boca. Mas a partir dos 10 anos desenvolvem um conjunto de aromas com uma profundidade e complexidade que não se encontra nos outros. Por vezes quase vale a pena só aspirar o aroma do vinho e deixá-lo ficar no copo. É preciso algum tempo e paciência para aprender a apreciá-los, mas com pratos bem temperados conseguem-se algumas refeições memoráveis. Experimentem o Frei João, que até é barato, com fondue de carne ou bife na pedra e verão se não calha a matar.
Acresce que alguns produtores, como Luís Pato, começaram a fazer os seus vinhos de modo a torná-los mais bebíveis enquanto novos, o que facilita a compra sem nos obrigar a guardar a garrafa 5 ou 10 anos. E convém não esquecer que algumas empresas bairradinas são das mais famosas e antigas no ramo, como as Caves Aliança e as Caves Messias.
Existem agora outros vinhos em clara ascensão e que começam a impor-se, como os da Estremadura e do Ribatejo, que vale a pena descobrir. Durante muito tempo associava-se ao Ribatejo a imagem do vinho carrascão, de garrafão e taberna. Nos últimos anos tudo mudou e ganharam uma elegância que os coloca a par dos melhores. Basta ver a quantidade de marcas que vão aparecendo e que são garantia de qualidade, como a Casa Cadaval, Fiúza ou Quinta do Falcão. Na Estremadura também há um nome que para nós é incontornável: Quinta de Pancas, que tem vindo a alargar o seu leque de opções no mercado.
Não esquecer a região de Setúbal, onde se produz a marca de vinho mais antiga de Portugal, o Periquita. Aliás, nesta região - em Azeitão, mais concretamente - estão sedeadas duas das maiores empresas portuguesas de vinhos, a José Maria da Fonseca e a Bacalhôa Vinhos (antiga J. P.). Daqui saem alguns dos vinhos mais conhecidos, como o Quinta de Camarate (branco e tinto), o BSE, o João Pires e o Quinta da Bacalhôa (de que aliás não sou grande apreciador porque considero que tem excesso de aroma a madeira).
Em resumo, o que vale a pena é ir à procura do que existe. Não excluir, à partida, nenhuma região, provar vinhos de todas. Quanto melhor as conhecermos mais hipóteses temos de refinar as nossas escolhas e, até, saber que preço é que vale a pena pagar por cada garrafa.
E agora, a eterna questão que fica em suspenso: branco, tinto ou verde?

Kronilketas, enófilo esclarecido e a escrever ainda sóbrio